quarta-feira, 23 de outubro de 2013

100 anos do poetinha


Pátria Minha

Vinicius de Moraes


A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamem
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama...
Vinicius de Moraes."


Texto extraído do livro "Vinicius de Moraes - Poesia Completa e Prosa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1998, pág. 383.

terça-feira, 18 de junho de 2013

SAIMOS DA CASINHA

“A praça é do povo”,
Já dizia o poeta.
Então vamos desafiar tanques
E leis marciais na Tianmen?
Exigir a volta dos parentes
Desaparecidos na de Maio?
Festejar a queda do muro
Na Potsdamer?
Lutar pelo fim da ditadura
Na Tahrir?
Exigir o fim do desemprego
Na Sintagma?
Enfrentar o primeiro-ministro
(Ou seria Grão-Vizir?) na Taksim?
Lutar contra o aumento
Da passagem de ônibus na da Sé,
Na Sinimbu ou na Cívica?
A praça é do povo
Que não quer mais
Só alimentar os pombos
Ou assistir a bandinha no Coreto.

E o povo foi para a rua

Só que como as manifestações estão sendo feitas por gente, o resultado de tudo isso ainda é inalcançável. Tudo pode acontecer

18/06/2013

Elaine Tavares

A luta de classe, já dizia o velho Marx, é isso mesmo: luta. Uma batalha entre aqueles que detêm os meios de produção contra os que são oprimidos por eles. Nesse confronto, as forças geralmente são desiguais porque os que dominam têm também o controle das forças armadas, a força bruta, a repressão. Por isso que, para vencer, os oprimidos só podem usar o que têm: "seus corpos nus", como dizia o grande repórter Marcos Faermann. Então, sem o recurso das armas só quando muitos corpos se unem numa mesma luta, é possível vencer a força bruta. Assim, a revolução!...
Mas, a revolução tampouco é coisa que nasce do nada. Ela é o acúmulo de anos e anos de medos, dores, ódios, amores, mortes, violências. As coisas vão acumulando nas camadas mais pobres da população, entre os oprimidos, até que um dia, um motivo torpe, uma coisa de nada, acende o estopim, e tudo começar a arder. Quem não se lembra de 1968, na França, quando uma manifestação estudantil contra a divisão de dormitórios, acendeu o pavio de um movimento gigantesco, que mudou a cara do mundo no que diz respeito aos costumes, à cultura e até à política. Não chegou a ser uma revolução, mas alavancou transformações importantes.
Ontem, no Brasil, a população viu o que não via há tempos. Multidões nas ruas, reivindicando, exigindo direitos, protestando. Começou como um dos tantos protestos contra o aumento de tarifas, teve uma reação fora de propósito pela polícia paulista e gerou uma onda incontrolável de manifestações. É um estopim.
Muitos analistas falam da falta de foco do movimento. Cada um protesta por uma coisa diferente. As reivindicações são difusas e não convergem para um propósito único, capaz de provocar uma fissura realmente considerável no sistema. Isso de fato é verdade. Há uma gana por dizer a palavra, há tantas coisas a reivindicar e isso tende a diluir as vitórias. Só que como as manifestações estão sendo feitas por gente, o resultado de tudo isso ainda é inalcançável. Tudo pode acontecer.
Tive a oportunidade de acompanhar algumas das grandes manifestações que ocorreram no mundo nos últimos anos. Estive na Grécia, nas greves gerais, quando milhões de pessoas saíram às ruas contra os "ajustes" impostos pelos bancos que levaram o país a bancarrota. Estive na Praça do Sol, na Espanha, vendo milhões a caminhar contra o arrocho provocado pela mesma crise que atingiu a Grécia. Estive na cidade do Cairo quando a multidão saiu às ruas para celebrar um ano da queda de Mubarack. Em cada um desses lugares, os milhões de manifestantes ( e tantos mortos) lograram poucas mudanças. A Grécia segue aprofundando as medidas de recessão, a Espanha elegeu um presidente da direita que também penaliza as gentes e o Egito ainda segue tentando garantir alguma transformação. Em todos esses momentos também foi possível observar as reivindicações difusas, as divisões internas, a intervenção "providencial" da direita. Porque a luta de classe é assim mesmo: batalha de duas concepções divergentes. E quando as gentes ocupam as ruas, a classe dominante sabe que também tem de sair, usurpando bandeiras e confundindo as mentes. Quando a força bruta perde eficácia, a classe dominante usa a confusão, usa a alienação mental potencializada pela mídia comercial a seu serviço, infiltra gente para fazer ações de desestabilização ou incita a que as façam. A batalha é feroz.
Mas, tudo isso não pode fazer com que o sentido da revolta seja diminuído. Num mundo onde as pessoas são diuturnamente bombardeadas com informações alienantes e desestruturastes, seja na escola, na mídia, nos diversos grupos sociais, é natural que os desejos de transformação sejam parciais, difusos, variados. Todo o sistema funciona no sentido de manter a mente das pessoas prisioneira da ideologia de que no capitalismo, em algum momento, se elas trabalharem direitinho, chegarão "lá". O que significa chegar a um nível de consumo capaz de satisfazer todos os desejos de vida boa e bonita.
Mas, no capitalismo, esse chegar lá é individual, depende de cada um. Daí a sua sedução. E essa mentira, repetida tantas vezes, em todos os veículos de transmissão da ideologia da classe dominante, vai se fazendo realidade. A classe dominante aprova e incentiva a formação de grupos diversos, para que as reivindicações fiquem mesmo difusas: negros, mulheres, LGBT, funcionários público, trabalhadores privados, familiares de presos, ecologistas, pela liberação da maconha, contra a corrupção. Assim, divididos e sem um corte de classe definido, fica bem mais fácil de controlar.
Só que chega um dia, como ontem, que essas gentes divididas entre tantas reivindicações segmentadas se juntam e caminham em uníssono. É onde nasce a possibilidade do ainda-não. É um momento único de explosão da consciência de classe. De alguma forma, todos ali na caminhada são oprimidos, estão enfrentando o mesmo aparato repressor, se enfrentam com um única classe dominante. É a luta de classe.
O que pode acontecer depois desses momentos de elevação da consciência de classe não há como saber. Pode ser apenas um momento de acumulação de força, de crescimento da consciência, de reconhecimento sobre quem é a elite dominante e como age para manter o controle. O fato é que a consciência de classe só pode brotar desses instantes únicos, de comunhão, de povo unido na rua. Ela não pode ser incutida pelo discurso, pelos cursos de formação. Ela só pode brotar assim, na práxis, no enfrentamento da vida mesma. As ruas do Brasil se encheram ontem, de jovens, de velhos, de trabalhadores, de crianças, de gente querendo mudanças. Como um dia, num passado bem próximo, se encheram pela anistia, pelas diretas, pela queda de Collor. Foi um momento lindo, bonito de se ver e viver.
Agora, nos palácios, governantes e aqueles que os governam, já ensaiam sua reação. Que virá. As tarifas vão baixar e eles esperarão para contabilizar os estragos, para observar as rachaduras no muro ideológico, sempre com o cimento na mão. Para nós, que estamos do outro lado, também será tempo de observar onde avançou a consciência de classe e seguir, sempre prontos para o combate.
Elaine Tavares é jornalista.

sábado, 13 de outubro de 2012

Exilados de seu território

presídio indígena da ditadura


Destaque topo
Nacional

Denúncias apontam o Reformatório Agrícola Krenak, em Minas Gerais, como centro de tortura de índios durante regime militar



09/10/2012



André Campos



de São Paulo (SP)









Sede do reformatório onde funcionava a sede da Funai na Fazenda



Guarani e onde fi cava a solitária onde os índios



eram confinados - Fotos: André Campos





Em julho, a Comissão Nacional da Verdade – sancionada pela presidenta Dilma Rousseff para investigar violações de direitos humanos cometidas, durante a ditadura militar, por agentes do Estado – anunciou que também irá apurar os crimes contra os índios. “Vamos investigar isso, sim, porque na construção de rodovias há histórias terríveis de violações de direitos indígenas”, afirmou, na ocasião, o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, um dos sete integrantes da Comissão.



Mas o massacre de etnias que se opuseram a grandes obras é apenas um dos capítulos dessa história. Tal como outros grupos subjugados nos “porões da ditadura”, os habitantes de aldeias Brasil afora também foram alvo de prisões clandestinas, associadas a denúncias de tortura, desaparecimentos e detenções por motivação política. E que, ao contrário de outros crimes cometidos pelo Estado à época, ainda não foram objeto de nenhum tipo de reparação oficial ou política indenizatória.



Tais violações de direitos humanos apontam para o município de Resplendor (MG), onde funcionou o Reformatório Agrícola Indígena Krenak, um velho conhecido do pataxó Diógenes Ferreira dos Santos. “Eu não gosto nem de falar, porque ainda me dá ódio”, diz, com o semblante fechado de quem está prestes a tocar em lembranças difíceis. “Mas quando puxa o assunto, meu irmão...” Quando começa, ele fala sem parar. Diógenes era ainda uma criança no dia em que, conforme conta, viu dois policiais se aproximarem da casa onde vivia, na Terra Indígena Caramuru Paraguaçu, encravada em meio às fazendas de cacau da região sul da Bahia. Vieram, diz ele, acionados por um fazendeiro, que reclamava ser o dono daquele local. Para não deixarem dúvidas sobre suas intenções, cravejaram de balas uma árvore próxima. E, logo depois, colocaram fogo na casa onde o pataxó vivia com sua família.



Exilados de seu território, Diógenes e seus pais viveram por cinco anos trabalhando numa fazenda próxima. Até serem novamente expulsos, no final da década de 1960. “Já que não tínhamos apoio de ninguém, decidimos voltar para o Caramuru”, conta.



Lá chegando, não demorou nem 15 dias para novamente apareceram policiais. Dessa vez estavam incumbidos de escoltar Diógenes e seu pai até a cidade. “Ficamos seis dias presos na delegacia de Pau Brasil (BA)”, relembra. “Até que veio a ordem de nos levarem para o reformatório Krenak, que eu nem sabia o que era”.





O índio pataxó Diógenes Ferreira dos Santos

No Krenak, a cerca de 700 km de sua terra natal, Diógenes, então ainda um adolescente, descreve ter vivido uma rotina de trabalhos forçados, realizados sob o olhar vigilante de policiais militares. “Íamos até um brejo, com água até o joelho, plantar arroz”, revela. Cotidiano interrompido apenas para esporádicos jogos de futebol, organizados pelos guardas e de participação obrigatória, segundo o pataxó. “Meu pai não gostava, nunca tinha jogado bola na vida. Aquilo era uma humilhação para ele.”



Ironicamente, mais de 40 anos depois, o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou, em maio de 2012, todos os direitos de propriedade dos fazendeiros que, nos dias atuais, ainda ocupavam a Terra Indígena Caramuru Paraguaçu. Sacramentando, portanto, a legitimidade do pleito de Diógenes na querela fundiária que o levou ao cárcere



Pedagogia da tortura



O reformatório Krenak começou a funcionar em 1969, em uma área localizada dentro do extinto Posto Indígena Guido Marlière. Suas atividades eram comandadas por agentes da Polícia Militar mineira, que, à época, recebeu a incumbência de gerir as terras indígenas daquele estado por meio de um convênio com a recém-criada Fundação Nacional do Índio (Funai).



Num boletim informativo da Funai de 1972, encontramos uma das poucas menções oficiais a respeito do local, qualificando-o como uma experiência de “reeducação de índios aculturados que transgridem os princípios norteadores da conduta tribal, e cujos próprios chefes, quando não conseguem resguardar a ordem na tribo, socorrem- se da Funai visando restaurar a hierarquia nas suas comunidades”. Osires Teixeira, então senador pela Aliança Renovadora Nacional (Arena) – o partido de sustentação da ditadura –, se pronunciou sobre o tema na tribuna do Senado, afirmando que os índios do Krenak “retornam às suas comunidades com uma nova profissão, com melhores conhecimentos, com melhor saúde e em melhores condições de contribuir com o seu cacique”.



À época, fora do governo – eram os “anos de chumbo” da ditadura –, também se contam nos dedos as referências à instituição. Em 1972, um enviado especial do Jornal do Brasil chegou a entrar clandestinamente no reformatório, naquela que provavelmente é a única reportagem in loco sobre o tema. Mas sua presença durou poucos minutos – segundo a própria matéria, ele foi expulso sob ameaças da polícia.



Ex-integrante do Conselho Indigenista Missionário em Minas Gerais (Cimi/ MG), a pedagoga Geralda Chaves Soares conheceu diversos ex-internos do Krenak. Aquilo que ela relata ter ouvido sobre os “métodos reeducacionais” da instituição – que incluíam indígenas açoitados e arrastados por cavalos – sugerem o real motivo por trás de tanto sigilo. “Uma das histórias contadas é a de dois índios urubu-kaápor que, no Krenak, apanharam muito para que confessassem o crime que os levou até lá”, conta ela. “O problema é que eles nem sequer falavam português”.





Foto atual de morador da Terra Indígena Maxacali

Um dos mais graves exemplos de tortura remete ao indígena Gero Maxacali, ex-morador da Aldeia Água Boa, em Santa Helena de Minas (MG). Levado ao Krenak, conta Geralda, lá ele teria sido literalmente queimado por dentro ao ser obrigado a beber, de forma alternada, leite fervendo e água gelada. Depois disso, com dificuldades para se alimentar, passou a ter sérios problemas de saúde – que, anos depois, o levariam à morte.



O Brasil de Fato teve acesso a documentos da Funai que desnudam diversos aspectos sobre o cotidiano do presídio indígena. Eles revelam que ao menos 120 indivíduos, pertencentes a 25 etnias dos mais diferentes rincões brasileiros, passaram pela instituição correcional. Pessoas que, via de regra, chegavam a Resplendor a pedido dos chefes de posto local da Funai. Mas também, em alguns casos, por ordem direta de altos escalões em Brasília.



É o caso, por exemplo, de um índio canela, do Maranhão, encaminhado à instituição em julho de 1969. “Além do tradicional comportamento inquieto da etnia – andarilhos contumazes –, o referido é dado ao vício da embriaguez, quando se torna agressivo e por vezes perigoso. Como representa um péssimo exemplo para a sua comunidade, achamos por bem confiá-lo a um período de recuperação na Colônia de Krenak”, atesta ofício emitido pelo diretor do Departamento de Assistência da Funai.



Homicídios, roubos e o consumo de álcool nas aldeias – na época reprimido com mão de ferro pela Funai – estão entre os principais motivos alegados para o envio de índios a temporadas corretivas. Além disso, também transparecem na burocracia oficial situações de brigas internas, uso de drogas, prostituição, conflitos com servidores públicos e indivíduos penalizados por atos descritos como vadiagem.



Boa parte desses supostos roubos, conforme revelam os próprios ofícios internos da Funai, remetem a atos de periculosidade risível, para dizer o mínimo. Gente como, por exemplo, um maxacali flagrado afanando uma cigarreira, três camisas de tergal, uma caixa de botões e alguns outros cacarecos na sede do seu posto indígena. Ou, ainda, o xerente que, após beber em uma “festa de civilizados”, voltou à aldeia pedalando a bicicleta de outra pessoa, tendo esquecido a sua própria para trás – engano provocado pela embriaguez segundo o próprio servidor local que solicitou a sua remoção.





Imagens atuais do espaço onde funcionava a solitária

As estadias no reformatório podiam durar de poucos dias a até mais de três anos. Para serem libertados, os internos dependiam da avaliação comportamental dos policiais custodiantes, mas também de certa dose de sorte para não se tornarem “índios extraviados” na confusa burocracia da Funai. “Não sabemos a causa real que motivou o seu encaminhamento, uma vez que não recebemos o relatório de origem”, escreveu aos seus superiores o cabo da PM Antônio Vicente, um dos responsáveis locais, sobre um índio xavante, considerado de bom comportamento, que lá estava há mais de cinco meses.



Nesse balaio de gatos, alguns casos soam quase surrealistas. Um deles ocorreu em 1971, quando chegou ao reformatório um índio urubu-kaápor, com ordens de permanecer sob severa vigilância e em alojamento isolado. Seu encaminhamento a um “período de recuperação” justificava-se, segundo a Ajudância Minas-Bahia – órgão da Funai ao qual estava subordinado o reformatório – por ele ter praticado “atos de pederastia” em sua aldeia.



Dois meses depois, consta nos documentos do órgão indigenista que ele se apoderou de uma Gilette para tentar suicídio com um corte no abdômen. Recebeu atendimento médico e, após alguns meses, tentou uma fuga, sendo recapturado já em outro município.



Entre os internos, havia também pessoas aparentemente acometidas de transtornos mentais, vivendo no Krenak sem qualquer tipo de amparo psiquiátrico. A exemplo de um índio da etnia campa, clinicamente diagnosticado como esquizofrênico segundo relatório do próprio órgão indigenista. E que, entre outras excentricidades, dizia possuir vários automóveis e aviões, além de ser amigo íntimo do mandatário supremo da nação. “Sempre que um avião passa sobre esse reformatório ele pula e grita, dizendo que é o presidente vindo busca-lo”, relata um ofício a seu respeito.







Ocrides Krenak: preso pelo consumo de cachaça

Para alguns dos indígenas, a ida ao Krenak provou-se um caminho sem retorno. É o caso de Manoel Vieira das Graças, o Manelão Pankararú, levado ao presídio indígena em 1969 após uma briga violenta com outros índios de sua aldeia. Com mulher e filhos, Manelão está até hoje instalado em Resplendor. Tal como outros índios que, desativado o reformatório, permaneceram na região por conta de amizades e casamentos oriundos dos anos de cárcere – havia também mulheres entre os prisioneiros.



Atualmente, ele faz planos para revisitar a aldeia onde nasceu pela primeira vez desde que saiu preso da Terra Indígena Pankararú, no sertão pernambucano. “Eu me arrepio só de lembrar das nossas danças, das brincadeiras e do Toré (ritual típico da etnia)”, confidencia, saudoso e emocionado. Sua casa atual fica a poucos quilômetros da antiga sede do Krenak, às margens do rio Doce, onde ainda existem as ruínas de concreto e aço da sede da instituição, parcialmente derrubadas por duas cheias no rio. Quando vier a próxima enchente, acreditam alguns moradores da região, devem também vir abaixo as últimas paredes que insistem em ficar de pé.



Entre os que não retornaram há também aqueles cujo destino, ainda hoje, permanece uma incógnita. Situação que remete, por exemplo, a Dedé Baena, ex-morador do Posto Indígena Caramuru, na Bahia. “Ninguém sabe se é vivo ou morto porque foi mudado para o presídio Krenak e desapareceu”, revela um não-índio, nascido na área do referido Posto Indígena, em depoimento de 2004 à pesquisadora Jurema Machado de Andrade Souza. Outros relatos atuais de indígenas da região confirmam o sumiço.



Em agosto de 1969, conforme está registrado em um ofício da Funai, Dedé foi levado a Resplendor a pedido do chefe do Posto em questão, que o qualificou como um “índio problema”, violento quando embriagado e dono de vasto histórico de agressões a “civilizados”. Lá chegou inclusive necessitando de cuidados médicos, com uma agulha de costura fincada na perna – ferimento ocorrido em circunstâncias não explicadas.



Nos documentos aos quais teve acesso, o Brasil de Fato não encontrou registros de sua eventual libertação, morte ou mesmo fuga.



“Índios vadios”



Paralelamente à chegada dos “delinquentes”, dezenas de índios krenaks ainda habitavam áreas vizinhas ao reformatório. Estavam submetidos à tutela dos mesmos policiais responsáveis pela instituição correcional, o que os tornava um alvo preferencial para ações de patrulhamento. Diversos deles acabaram confinados.



Homens e mulheres krenaks foram também recrutados para trabalhar na prisão indígena, e dão testemunho sobre as violências desse período. “Quem fugia da cadeia sofria na mão deles”, afirma Maria Sônia Krenak, ex-cozinheira no local. “E a mesma coisa as crianças da aldeia. Se fugissem da escola, também apanhavam”.



Por mais incrível que pareça, até mesmo a vida amorosa dos índios locais passava pelo crivo da polícia. “Antes de responder ao ‘pedido de casamento’, procedi (sic) uma sindicância sigilosa e sumária na vida pregressa do pretendente, apurando-se que é pessoa pobre, porém honesta”, aponta ofício escrito pelo sargento da PM Tarcisio Rodrigues, então chefe do Posto Indígena, pedindo aos seus superiores deliberação sobre o noivado de uma índia com um não índio dos arredores.



Na Terra Indígena Krenak, homologada em 2001 em Resplendor, muitos ainda tem histórias para contar sobre esse período. “Eu, uma vez, fiquei 17 dias preso porque atravessei o rio sem ordem, e fui jogar uma sinuquinha na cidade”, rememora José Alfredo de Oliveira, patriarca de uma das famílias locais. É um exemplo típico do que, para a polícia, era considerado um ato de vadiagem.



Assim como ocorria em outras regiões do país, os krenaks só podiam deixar o território tribal mediante a autorização do chefe local da Funai. Até mesmo a caça e a pesca fora dos postos indígenas – frequentemente inadequados para prover a alimentação básica – podiam, à época, levar índios Brasil afora diretamente ao reformatório.



Para Geralda, ex-Cimi, por trás de situações como essas – de sedentarismo forçado, prisões de “índios vadios” e até mesmo de supostos ladrões – havia, na verdade, um contexto de conflito territorial. “Por exemplo, os maxacalis (habitantes do Vale do Mucuri, no nordeste de Minas Gerais). Nessa época eles atacavam as fazendas de gado. Estavam confinados num posto indígena, passando fome, então caçar uma vaca era uma atividade de caçador mesmo. E aí prendiam o índio porque ele tinha roubado uma vaca”, contextualiza. “Mas, de fato, era uma questão de sobrevivência, e também de resistência. Achavam que, pressionando os fazendeiros, eles iriam embora. A compreensão maior de que a luta pela terra tem esse viés da Justiça só veio depois.”



No início dos anos de 1970, até mesmo a área ocupada pelos krenaks e pelo reformatório vivia dias de intensa disputa, reivindicada por posseiros que arrendaram lotes nos arredores. Como saída para o imbróglio, o governo de Minas Gerais e a Funai negociaram uma permuta entre tais terras e a Fazenda Guarani, área localizada em Carmésia (MG) e que pertencia à Polícia Militar mineira. Em 1972, foram todos – os krenaks, o reformatório e os confinados – deslocados para lá.



Logo após essa mudança, mudou também o chefe da Ajudância Minas- Bahia. Quem o assumiu foi o juruna João Geraldo Itatuitim Ruas, um dos primeiros servidores de origem indígena a ocupar postos de comando na Funai. “Imagina o que era para mim, como índio, ouvir a ordem do dia do cabo Vicente, botando todos os presidiários em fila indiana, antes de tomarem um café corrido, e falando que seria metido o cacete em quem andasse errado. E que, para aquele que fugisse, havia quatro cachorros policiais, treinados e farejadores, prontos para agir”, exemplifica. “Eles não trabalhavam no sábado, que era dia de lavar a roupa, costurar, essas coisas todas. Mas, durante a semana, era trabalho escravo!”



Frente a essa realidade, Ruas afirma ter procurado o ministro do Interior – Maurício Rangel Reis, morto em 1986 – para discutir o fim da instituição correcional. Um encontro do qual diz ter saído sob ameaças de demissão. Mesmo assim, ele conta ter começado a enviar, de volta às aldeias de origem, diversos dos confinados. Ruas perdeu seu cargo pouco tempo depois.



Mas enquanto alguns saíam, a Fazenda Guarani ainda recebia, em meados da década de 1970, outras levas indígenas fruto de litigâncias fundiárias no Brasil. Foi o que ocorreu com os guaranis da Aldeia Tekoá Porã, em Aracruz (ES).



Os guaranis, explica o cacique Werá Kwaray – que passou parte da sua adolescência em Carmésia –, caminham pelo mundo seguindo revelações. E foi uma revelação que levou o seu grupo a sair do sul do país, na década de 1940, em busca da “terra sem males” – local onde, segundo as crenças da etnia, é possível alcançar uma espécie de perfeição mística, algo como um paraíso na terra. Liderados por uma xamã, chegaram a Aracruz duas décadas depois. Mas sobre aquele lugar também repousavam planos para viabilizar enormes plantações de eucalipto, um choque de interesses levou os indígenas, sob pressão e a contragosto, para a Fazenda Guarani. “Foi uma violação dos direitos sagrados dos nossos líderes religiosos”, expõe o cacique.



Depois de alguns anos em Carmésia, os guaranis retornaram a Aracruz, onde, em 1983, conseguiram a homologação da área indígena que habitam até hoje.



A virada dos anos de 1970 para os anos de 1980 marca as últimas denúncias sobre o uso da Fazenda Guarani como local de prisão, confinamento ou despejo de índios “sem terra”. Todos foram embora do local, à exceção de um grupo pataxó que lá se instalou definitivamente após sair de áreas em Porto Seguro (BA). Atualmente, o casarão que servia como sede aos destacamentos policiais foi convertido em moradia para alguns desses indígenas. E a antiga solitária local virou um depósito onde se empilham os cachos de banana abundantemente colhidos nas redondezas.



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domingo, 7 de outubro de 2012

DO BLOG SÍNTESE CUBANA




SEGUNDA-FEIRA, 1 DE OUTUBRO DE 2012

Eleições em Cuba: Quem indica os candidatos é o povo



Estudantes participam,

voluntariamente, da fiscalização

das eleições.

Vânia Barbosa



De acordo com o estabelecido na Constituição da República e na Lei Eleitoral nº 72, de 29 de outubro de 1992, o Conselho de Estado de Cuba convocou, no último 5 de julho, eleições gerais para delegados às Assembleias Municipais, Provinciais e Nacional do Poder Popular. Em uma primeira etapa, em 21 de outubro, os eleitores elegem, para um mandato de dois anos e meio, os delegados às Assembleias Municipais, e em 28 de outubro, em segundo turno, nas localidades em que nenhum dos candidatos tenha obtido 50% dos votos válidos mais um. Os delegados às Assembleias Provinciais e à Assembleia Nacional do Poder Popular serão eleitos por um período de cinco anos, em uma nova data a ser estabelecida. Está prevista a participação de cerca de 8,5 milhões de cubanos.



Desvinculado do modelo partidarista, o sistema eleitoral cubano possibilita o exercício livre da cidadania com a escolha dos candidatos pelos próprios eleitores, o que incentiva o alto índice de comparecimento às eleições, mesmo que o voto não seja obrigatório. Os candidatos não são indicados por partidos e sim pelos cidadãos maiores de 16 anos que automaticamente são inscritos no Registro Eleitoral, sem custos ou burocracia. Conforme o Artigo 3º da Lei Eleitoral, o voto é livre, igualitário e secreto, e o cidadão está protegido contra punições, multas ou sanções no trabalho caso se abstenha de votar, ao contrário do que ocorre em outros países. Os membros das Forças Armadas têm direito a votar, eleger e a ser eleitos.



Após a convocação das eleições, no início de julho, mais de 170 mil cubanos – representantes de todos os setores sociais do país – se qualificaram como autoridades eleitorais para integrar as comissões provinciais, municipais e de circunscrição que conduzem o processo de escolha dos delegados e, posteriormente, validam os resultados. Desde o último dia 3 de setembro e até o dia 29, a população participa das mais de 50.900 assembleias – organizadas também pela Comissão Eleitoral Nacional (CEN) – e ali indica, abertamente, os delegados que concorrem às Assembleias Municipais e Provinciais e à Assembleia Nacional do Poder Popular, eleitos mediante voto em urna, direto e secreto.



Os encontros são realizados em cerca de 29.500 circunscrições eleitorais e cada eleitor pode indicar um candidato entre os moradores residentes na área e, inclusive, de outra área pertencente à mesma circunscrição, caso seja necessário. Seguindo a legislação eleitoral – dependendo do número de habitantes – cada área terá entre dois e oito candidatos, tudo para garantir outras opções aos votantes e a indicação de pessoas com “méritos, capacidade, condições e possibilidades de representar a população”. A circunscrição eleitoral é uma divisão territorial do município a partir do número de seus habitantes, e se constitui em célula fundamental do Sistema do Poder Popular.



Desde o dia 22 de setembro foram divulgadas as listas dos candidatos para que a população as revise e, caso necessário, solicite adequações ou emendas, por meio das autoridades eleitorais. As alterações poderão ser feitas até a primeira quinzena de outubro e a partir daí têm início os preparativos para a etapa inicial das eleições, no dia 21 do mesmo mês.



Segundo dados da CEN, desde 1976, quando entrou em vigor a atual Constituição, mais de 95% dos eleitores inscritos têm participado das eleições. Nas últimas eleições para deputados votaram cerca de 8 milhões de cubanos, cifra que superou 98% de participação e com baixo índice de votos nulos ou em branco. Em Cuba, o registro de eleitores para as eleições gerais 2012–2013 conta com cerca de 8,5 milhões de cubanos, em um país de 11 milhões de habitantes.



A propaganda eleitoral



Outra característica no processo eleitoral cubano é a ausência de marketing e custos com propaganda, fatores que em outros países favorecem candidatos com maior poder econômico ou implicam a necessidade de obtenção de fundos para eleger um representante. As praças e as ruas são limpas de painéis ou panfletos e os candidatos não precisam disputar ou pagar espaços nos jornais, rádios e televisões. Também não ocorrem campanhas difamatórias entre os candidatos. A propaganda é feita pelas autoridades eleitorais que são responsáveis por publicar, na área de residência dos eleitores, as fotos dos candidatos – todas em um mesmo formato e tamanho – e uma síntese da sua biografia.



Para concorrer não é necessário que o candidato seja filiado a qualquer partido político e as regras são as mesmas para todos os cargos do Poder Popular. As candidaturas deverão ser antes apresentadas por alguma organização ou movimento social e submetidas à consideração da Assembleia do Poder Popular da circunscrição correspondente, além de aprovadas pelos delegados. Será considerado eleito aquele que obtenha mais da metade dos votos válidos dos eleitores. 50% das vagas são garantidas às mulheres.



Após eleger seu representante, a população participa das discussões e decisões mais importantes. Também, a qualquer momento, o mandato poderá ser revogado pela maioria dos eleitores caso o eleito não cumpra com as obrigações assumidas em sua base eleitoral. Não existe remuneração para o exercício do mandato e os eleitos permanecem exercendo suas profissões e recebendo o salário correspondente a seu trabalho.



A composição atual do Poder Popular se dá da seguinte forma: Assembleia Nacional do Poder Popular; Assembleias Provinciais do Poder Popular, em cada uma das 15 províncias, além do município especial da Isla de la Juventud; Assembleias Municipais, nos 169 municípios; 1.540 Conselhos Populares, cada um agrupando várias circunscrições eleitorais e integrados pelos seus delegados, dirigentes de organizações de massas e representantes de entidades administrativas; circunscrições eleitorais, ainda que não pertençam de forma orgânica à estrutura do sistema do Poder Popular ou do Estado são fundamentais antes e após o processo eleitoral.



O Presidente, o Conselho de Estado e o Conselho de Ministros



Tanto os membros do Conselho de Estado como os do Conselho de Ministros são indicados pelos delegados eleitos para a Assembleia Nacional do Poder Popular. Considerando o Artigo 74 da Constituição da República de Cuba, o Conselho de Estado é formado por um presidente, um primeiro vice-presidente, cinco vice-presidentes e um secretário. Para ser presidente do Conselho de Estado é necessário antes ser eleito deputado com mais de 50% dos votos válidos, diretos e secretos da população e, em nova votação, deverá alcançar mais de 50% dos votos secretos dos parlamentares.



O Partido Comunista Cubano



Há muitas dúvidas ou distorções que pairam sobre a existência de um partido único em Cuba, o Partido Comunista Cubano, e a relação que isso tem com a democracia. De acordo com a Constituição cubana, durante o processo eleitoral, o PCC não indica candidatos e nem faz campanha a favor de seus militantes. Por se diferenciar do conceito clássico de partidos políticos se mantém em sua condição de força dirigente superior da sociedade com a missão de representar os interesses de todo o povo e não somente os da sua militância.



O partido não tem ingerência na Assembleia Nacional do Poder Popular e nem no governo, e só após consulta à população, via assembleias, apresenta propostas para serem apreciadas nestas instituições. Em processos eleitorais ocorridos até hoje já foram eleitos inúmeros militantes do PCC, indicados pelas assembleias populares em razão de seus méritos pessoais e compromissos com a sociedade, e não pela sua militância no Partido. Um importante papel exercido pelo PCC é o de acompanhar e garantir o cumprimento das leis do país, dentre elas, a Lei Eleitoral.



Vânia Barbosa é jornalista e presidente do Conselho Deliberativo da ACJM/RS.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

declaração fascistóide

domingo, 16 de setembro de 2012


Alckmin e a retórica da ditadura


Por Altamiro Borges







“Quem não reagiu está vivo”. A frase do governador Geraldo Alckmin (PSDB), dita logo após a operação da Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar (Rota) que resultou na morte de oito suspeitos de ligação com o Primeiro Comando da Capital (PCC), na quarta-feira passada, continua causando mal-estar em São Paulo. Até o Estadão, famoso pelo seu conservadorismo e pelo alinhamento ao tucanato, criticou ontem (15) a postura truculenta do governador no artigo intitulado “comportamento lamentável”.





“Alckmin resumiu, com um simplismo e uma pressa inadmissíveis para quem ocupa um cargo como o seu, a versão da PM de que as mortes se deveram à resistência dos ‘julgadores’ e do ‘acusado’... Mesmo que tenha havido de fato resistência dos suspeitos mortos, ela não basta para explicar o que houve em Várzea Paulista. O número elevado de mortes para um confronto como esse indica claramente que a operação foi mal planejada”, afirma o jornalão, que conclui alertando para o risco da posição do atual governante:







“A posição do governador Alckmin é particularmente delicada. E não só porque está adiantando conclusões que não podem ser tiradas antes da apuração dos fatos. É, também, porque, ao fazer isso, como tem a PM sob seu comando, ele está indiretamente incentivando a corporação a agir sem os necessários cuidados, a começar pelo correto planejamento das suas operações. Não é disso que a PM precisa para melhorar seu desempenho na luta contra o crime. É de coragem para corrigir falhas, o que começa por reconhecê-las”.





Mas a crítica mais dura à ação da PM e à declaração fascistóide do tucano foi publicada hoje na Folha. Ela é assinada pela psicanalista Maria Rita Kehl, que integra a Comissão da Verdade do governo federal. Para a reconhecida defensora dos direitos humanos, o governador Geraldo Alckmin – que muitos esquecem que sempre manteve vínculos com a seita fascista Opus Dei – usou a mesma retórica dos matadores da ditadura militar. Reproduzo o artigo na íntegra:





*****





O veredicto de Geraldo Alckmin





MARIA RITA KEHL





"Quem não reagiu está vivo", disse o governador de São Paulo ao defender a ação da Rota na chacina que matou nove supostos bandidos numa chácara em Várzea Paulista, na última quarta-feira, dia 12. Em seguida, tentando aparentar firmeza de estadista, garantiu que a ocorrência será rigorosamente apurada.





Eu me pergunto se é possível confiar na lisura do inquérito, quando o próprio governador já se apressou em legitimar o morticínio praticado pela PM que responde ao comando dele.





"Resistência seguida de morte": assim agentes das Polícias Militares, integrantes do Exército e diversos matadores free-lancer justificavam as execuções de supostos inimigos públicos que militavam pela volta da democracia durante a ditadura civil militar, a qual oprimiu a sociedade e tornou o país mais violento, menos civilizado e muito mais injusto entre 1964 e 1985.





Suprimida a liberdade de imprensa, criminalizadas quaisquer manifestações públicas de protesto, o Estado militarizado teve carta branca para prender sem justificativa, torturar e matar cerca de 400 estudantes, trabalhadores e militantes políticos (dos quais 141 permanecem até hoje desaparecidos e outros 44 nunca tiveram seus corpos devolvidos às famílias -tema atual de investigação pela Comissão Nacional da Verdade).





Esse número, por si só alarmante, não inclui os massacres de milhares de camponeses e índios, em regiões isoladas e cuja conta ainda não conseguimos fechar. Mais cínicas do que as cenas armadas para aparentar trocas de tiros entre policiais e militantes cujos corpos eram entregues às famílias totalmente desfigurados, foram os laudos que atestavam os inúmeros falsos "suicídios".





Herzog





A impunidade dos matadores era tão garantida que eles não se preocupavam em justificar as marcas de tiros pelas costas, as pancadas na cabeça e os hematomas em várias partes do corpo de prisioneiros "suicidados" sob sua guarda. Assim como não hesitaram em atestar o suicídio por enforcamento com "suspensão incompleta", na expressão do legista Harry Shibata, em depoimento à Comissão da Verdade, do jornalista Vladimir Herzog numa cela do DOI-Codi, em São Paulo.





Quando o Estado, que deveria proteger a sociedade a partir de suas atribuições constitucionais, investe-se do direito de mentir para encobrir seus próprios crimes, ninguém mais está seguro. Engana-se a parcela das pessoas de bem que imaginam que a suposta "mão de ferro" do governador de São Paulo seja o melhor recurso para proteger a população trabalhadora.





Quando o Estado mente, a população já não sabe mais a quem recorrer. A falta de transparência das instituições democráticas -qualificação que deveria valer para todas as polícias, mesmo que no Brasil ainda permaneçam como polícias militares- compromete a segurança de todos os cidadãos.





Vejamos o caso da última chacina cometida pela PM paulista, cujos responsáveis o governador de São Paulo se apressou em defender. Não é preciso comentar a bestialidade da prática, já corriqueira no Brasil, de invariavelmente só atirar para matar - frequentemente com mais de um tiro.





Além disso, a justificativa apresentada pelo governador tem pelo menos uma óbvia exceção. Um dos mortos foi o suposto estuprador de uma menor de idade, que acabava de ser julgado pelo "tribunal do crime" do PCC na chácara de Várzea Paulista. Ora, não faz sentido imaginar que os bandidos tivessem se esquecido de desarmar o réu Maciel Santana da Silva, que foi assassinado junto com os outros supostos resistentes.





Aliás, o "tribunal do crime" acabara de inocentar o acusado: o senso de justiça da bandidagem nesse caso está acima do da PM e do próprio governo do Estado. Maciel Santana morreu desarmado. E apesar da ausência total de marcas de tiros nos carros da PM, assim como de mortos e feridos do outro lado, o governador não se vexa de utilizar a mesma retórica covarde dos matadores da ditadura -"resistência seguida de morte", em versão atualizada: "Quem não reagiu está vivo".





Camorra





Ora, do ponto de vista do cidadão desprotegido, qual a diferença entre a lógica do tráfico, do PCC e da política de Segurança Pública do governo do Estado de São Paulo? Sabemos que, depois da onda de assassinatos de policiais a mando do PCC, em maio de 2006, 1.684 jovens foram executados na rua pela polícia, entre chacinas não justificadas e casos de "resistência seguida de morte", numa ação de vendeta que não faria vergonha à Camorra. Muitos corpos não foram até hoje entregues às famílias e jazem insepultos por aí, tal como aconteceu com jovens militantes de direitos humanos assassinados e desaparecidos no período militar.





Resistência seguida de morte, não: tortura seguida de ocultação do cadáver. O grupo das Mães de Maio, que há seis anos luta para saber o paradeiro de seus filhos, não tem com quem contar para se proteger das ameaças da própria polícia que deveria ajudá-las a investigar supostos abusos cometidos por uma suposta minoria de maus policiais. No total, a polícia matou 495 pessoas em 2006.





Desde janeiro deste ano, escreveu Rogério Gentile na Folha de 13/9, a PM da capital matou 170 pessoas, número 33% maior do que os assassinatos da mesma ordem em 2011. O crime organizado, por sua vez, executou 68 policiais. Quem está seguro nessa guerra onde as duas partes agem fora da lei?





Assassinatos





A pesquisadora norte-americana Kathry Sikkink revelou que o Brasil foi o único país da América Latina em que o número de assassinatos cometidos pelas polícias militares aumentou, em vez de diminuir, depois do fim da ditadura civil-militar.





Mudou o perfil socioeconômico dos mortos, torturados e desaparecidos; diminuiu o poder das famílias em mobilizar autoridades para conseguir justiça. Mas a mortandade continua, e a sociedade brasileira descrê da democracia.





Hoje os supostos maus policiais talvez sejam minoria, e não seria difícil apurar suas responsabilidades se houvesse vontade política do governo. No caso do terrorismo de Estado praticado no período investigado pela Comissão da Verdade, mais importante do que revelar os já conhecidos nomes de agentes policiais que se entregaram à barbárie de torturar e assassinar prisioneiros indefesos, é fundamental que se consiga nomear toda a cadeia de mando acima deles.





Se a tortura aos oponentes da ditadura foi acobertada, quando não consentida ou ordenada por autoridades do governo, o que pensar das chacinas cometidas em plena democracia, quando governadores empenham sua autoridade para justificar assassinatos cometidos pela polícia sob seu comando?





Como confiar na seriedade da atual investigação, conduzida depois do veredicto do governador Alckmin, desde logo favorável à ação da polícia? Qual é a lisura que se pode esperar das investigações de graves violações de Direitos Humanos cometidas hoje por agentes do Estado, quando a eliminação sumária de supostos criminosos pelas PMs segue os mesmos procedimentos e goza da mesma impunidade das chacinas cometidas por quadrilhas de traficantes?





Não há grande diferença entre a crueldade praticada pelo tráfico contra seis meninos inocentes, no último domingo, no Rio, e a execução de nove homens na quarta, em São Paulo. O inquietante paralelismo entre as ações da polícia e dos bandidos põe a nu o desamparo de toda a população civil diante da violência que tanto pode vir dos bandidos quanto da polícia.





"Chame o ladrão", cantava o samba que Chico Buarque compôs sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide. Hoje "os homens" não invadem mais as casas de cantores, professores e advogados, mas continuam a arrastar moradores "suspeitos" das favelas e das periferias para fora dos barracos ou a executar garotos reunidos para fumar um baseado nas esquinas das periferias das grandes cidades.





Pela culatra





Do ponto de vista da segurança pública, este tiro sai pela culatra. "Combater a violência com mais violência é como tentar emagrecer comendo açúcar", teria dito o grande psicanalista Hélio Pellegrino, morto em 1987.





E o que é mais grave: hoje, como antes, o Estado deixa de apurar tais crimes e, para evitar aborrecimentos, mente para a população. O que parece ser decidido em nome da segurança de todos produz o efeito contrário. O Estado, ao mentir, coloca-se acima do direito republicano à informação - portanto, contra os interesses da sociedade que pretende governar.





O Estado, ao mentir, perde legitimidade - quem acredita nas "rigorosas apurações" do governador de São Paulo? Quem já viu algum resultado confiável de uma delas? Pensem no abuso da violência policial durante a ação de despejo dos moradores do Pinheirinho... O Estado mente - e desampara os cidadãos, tornando a vida social mais insegura ao desmoralizar a lei. A quem recorrer, então?





A lei é simbólica e deve valer para todos, mas o papel das autoridades deveria ser o de sustentar, com sua transparência, a validade da lei. O Estado que pratica vendetas como uma Camorra destrói as condições de sua própria autoridade, que em consequência disso passará a depender de mais e mais violência para se sustentar.

Postado por Miro às 16:26

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

tragédias?

Nos últimos 20 dias, cinco grandes incêndios atingiram favelas em São Paulo. Esse tipo de incidente cresce a cada ano em proporções assustadoras. Entre 2008 e 2011 foram mais de 500 incêndios em favelas. Em 2012, segundo o corpo de bombeiros, já são 32. A destruição é enorme, quando não é fatal: móveis, eletrodomésticos, barracos inteiros. Pessoas feridas e até mortas. Por que isso ocorre com tamanha frequência? Quais são os reais motivos para tantos “acidentes” e tragédias? Que setores da sociedade se envolvem com essa situação? Qual é a condição das famílias que perdem tudo a cada incêndio?




No dia 17 de agosto, a favela do Areão, próxima a Marginal Pinheiros na Zona Oeste, pegou fogo e cerca de 300 pessoas ficaram desabrigadas. Moradores afirmam que o corpo de bombeiros não permitiu que eles ajudassem a conter as chamas. O incêndio não destruiu a favela inteira, o que permitiu que os moradores que haviam perdido tudo pudessem começar a reerguer suas moradias. No dia seguinte, a favela Alba, região do Jabaquara, próxima ao aeroporto de Congonhas também foi incendiada, desabrigando quase 200 pessoas. A prefeitura não ofereceu sequer alojamento para as famílias que perderam tudo. Já no dia 23 de agosto, uma favela localizada na Vila Prudente, próxima a uma estação de trem na Zona leste pegou fogo pela segunda vez em 2 anos. Dessa vez, mais de 600 pessoas ficaram sem teto. Os próprios moradores se organizaram e ficaram abrigados numa escola de samba vizinha à comunidade, já que a prefeitura não disponibilizou nenhum abrigo. Além disso, a PM isolou o local e não permitiu que os moradores reconstruíssem suas casas após o incêndio. Poucos dias depois, 28 de agosto foi a vez da favela da Paixão, próxima a Avenida Jacu Pêssego em São Miguel Paulista na Zona Leste ser incendiada, desabrigando cerca de 300 pessoas. Mais uma vez, a prefeitura não ofereceu nenhuma assistência às famílias que, indignadas, travaram por alguns minutos a Avenida Jacu-Pessego que dá acesso à rodovia Ayrton Senna e foram tratados com bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e tiros de borracha pela PM. O último e possivelmente mais trágico incêndio do ano ocorreu no último dia 3 de setembro na favela Morro do Piolho na região do Campo Belo, próximo ao aeroporto de Congonhas. Mais de 1000 pessoas perderam suas casas, quatro pessoas ficaram feridas pelo fogo e, pra variar, a PM permanece no local impedindo os moradores de voltarem. O detalhe é que a área estava nos planos de “desapropriações” planejado para ocorrer em todo o eixo da Avenida Jornalista Roberto Marinho.



Em geral as razões atribuídas para os incêndios são “acidentes” com rede elétrica clandestina ou com botijões de gás que seriam mal manuseados pelos moradores das favelas, além do que o período mais seco do ano ajudaria propagar as chamas. O que pouco se fala é que, em geral, essas tragédias ocorrem em regiões extremamente valorizadas do ponto de vista do setor imobiliário da cidade. Marginal Pinheiros, Jacu Pêssego, Rodovia Ayrton Senna e região do aeroporto de Congonhas são algumas das fatias urbanas que mais interessam à especulação imobiliária. Essas regiões abrigam condomínios, hotéis, shoppings, estações de trem e metrô, sendo as áreas das favelas objetos de desejos dos empreendimentos vampirescos dos empresários da construção civil. Essas pessoas tem interesse direto e explícito em acabar com as favelas nesses lugares.



Como nem sempre é possível despejar as famílias com a truculência militar ou com indenizações ridículas, os incêndios prestam um grande serviço à intenção de expulsar os mais pobres das áreas mais valorizadas da cidade. Não é só o caso desses últimos incêndios, mas da maioria deles. Favela do Moinho (2011), Real Parque e Jaguaré (2010) comprovam através de fatos que os incêndios em favelas não são um mero acaso.



Casos tão gritantes provocaram a criação de uma CPI dos incêndios em favelas na câmara municipal de São Paulo. Pra inglês ver. Em cinco meses de “funcionamento”, a CPI se reuniu apenas 3 vezes. A última delas numa reunião que durou 20 minutos! Detalhes importantes: 1- Nessas três reuniões, o único encaminhamento foi a nomeação de um relator (Aníbal de Freitas, do PSDB) e uma vice-presidente (Edir Sales, do PSD); 2- a CPI tem prazo até dia 9 de setembro pra apresentar um relatório da investigação que ainda não começou; 3- a maioria dos vereadores são da base de apoio do governo municipal de Gilberto Kassab, o mesmo que negou qualquer assistência aos moradores atingidos pelos incêndios. É evidente que a CPI vai acabar em fumaça, assim como os barracos...



Kassab também é o prefeito-amigo da especulação imobiliária. Entre 2009 e 2012, grandes construtoras receberam em contratos com a prefeitura mais de R$ 2 bilhões. Para se ter uma idéia, as construtoras Camargo Correa, EIT, OAS e Engeform (que constam entre as maiores do Brasil) doaram juntas para a campanha de Kassab em 2008 cerca de R$ 6 milhões e em troca somaram em contratos junto à prefeitura nos 4 anos seguintes, nada menos que R$ 639 milhões! Mais de 100 vezes mais o valor investido! Vale ressaltar que a prefeitura destinou em 2011 o valor absurdo de R$ 1mil reais para a compra de áreas para a construção de habitação popular.



Os trabalhadores mais pobres, especialmente moradores de regiões muito valorizadas são um obstáculo concreto e inconveniente para a especulação imobiliária e para os governos, patrocinados por ela. Vivem sob a maior precariedade possível e em situações como essas, perdem absolutamente tudo e ainda são criminalizados. Não se pode esperar nenhuma solução por parte da prefeitura ou de outras esferas do governo, pois estamos diante da mais crua e cruel guerra entre interesses diferentes: os que colocam os lucros acima da vida contra os que sobrevivem teimosamente em busca de dignidade.







*Membro da coordenação nacional do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) e da Resistência Urbana – Frente Nacional de Movimentos










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A lua cheia de beleza e luz É fase bela e misteriosa Por que será que a tantos seduz ? Talvez porque tão decantada em prosa. Lua minguante, fase tão modesta Que míngua a dor do que acredita nela. É lua boa e não se manifesta Como uma fase que aparece bela. A lua nova, clara e brilhante, Sempre renova a fé de algum mortal; É lua limpa, não tem semelhante Visível em todo plano sideral. Lua crescente, cresce a esperança, De vida boa, com fartura e paz. Com fé na lua, toda graça alcança, Quem, com trabalho, seu destino faz. Dizem que a lua influencia a vida, Sendo a raiz dessa crença remota. Há quem afirme ser crença vencida, Mas contestá-la se torna idiota...

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